sexta-feira, julho 28, 2006


Lições de infância
Se é nítida a função dos contos, fábulas e histórias infantis no extender da imaginação e no incutir de principios morais e éticos - se desobedeces aos teus pais, arriscas-te a ser devorada por uma fera mal intencionada; se não dás ouvidos aos conselhos e avisos paternos, podes entrar em coma durante uma eternidade; é perigoso aceitar presentes de estranhos, especialmente quando vêm disfarçados de velhinhas bondosas; esquece pretenções a fazer um bom casamento a menos que tenhas vestidos deslumbrantes e sapatos de pedras preciosas; etc e tal - já a função das canções que todos entoávamos quando era miuda me parece mais obscura. Creio que não me ensinaram rigorosamente nada de construtivo ou didático; antes pelo contrário. Senão vejamos: um gato que por um triz se safa de uma morte violenta à paulada; uma menina que parte um cantaro e implora que a mãe não a espanque; uma viuvinha chorosa, desesperada e indesejada à procura de noivo; um malhão (mas o que é afinal um malhão?) que come, bebe e vadia; uma criada com sete namorados que não ama; um barqueiro que não se compadece de uma mãe e a força a sacrificar-se a si propria ou a um dos filhos; e por aí fora um rol de desgraças. Serão uma forma de inoculação para a vida, pequenos traumas que nos vacinaram contra potenciais traumas maiores e mais profundos? Ou apenas um produto da falta de consciência e sensibilidade da parte dos adultos? E será que nos tempos politicamente correctos que correm ainda se ensinam estas canções às crianças?

7 Comments:

Blogger papel químico said...

eu confesso que adaptei a letra do "atirei um pau ao gato" para "dei um carapau ao ga-to-to, mas o ga-to-to não comeu-eu-eu". infelizmente a coisa não pegou e, passado pouco tempo, o gato começou mesmo a apanhar pauladas!

29 julho, 2006 00:09  
Blogger Vida de Praia said...

Boa tentativa! : ) Foi mesmo pena não ter ainda pegado. Se os autores de músicas infantis deste teor vil não se põem a pau, têm a Soc. Protectora dos Animais e a Unicef à perna - e aí é que vão ser elas!... : )

29 julho, 2006 15:17  
Blogger papel químico said...

o que vale é que os crimes deles já prescreveram ; )

30 julho, 2006 02:34  
Blogger tikka masala said...

Fartei-de de rir com este post! Muito bem observado, de facto, esse mistério da violência gratuita subjacente às letras das canções tradicionais que ainda hoje se ensinam às crianças. Por curiosidade, devo dizer que também modifiquei ligeiramente a letra do pau ao gato e também não pegou. Na minha versão, eu atirava um pau na mesma, "mas o gato-to-to não comeu-eu-eu." Eu acho que as músicas (assim como muitos contros tradicionais mais obscuros e insólitos que se contam nas aldeias) inventadas pelo povo têm esta característica: são frutos de uma imaginação colectiva delirante muitas vezes baseados em atrocidades que talvez tenham sido mesmo cometidas. Uma espécie de método inconsciente para exorcizar males e fantasmas que de outra forma conduziriam a diferentes tipos de "escape", talvez mais preocupantes. Por outro lado, há muita "parvoíce" nas letras das canções que resulta de simples jogos de palavras e sons. Muitos disparates que se dizem são mesmo só para rimar!

30 julho, 2006 16:28  
Blogger Vida de Praia said...

Tikka: 5 pontos pela originalidade e -10 pontos pela falta de consenso ou lógica - atirei o pau ao gato-to-to mas o gato-to-to não comeu-eu-eu??! (a menos que o "comer" aqui seja em sentido figurado, tipo: comer um enxerto de porrada, what were you thinking of??!) Se não pegou é porque tens uma filha muito perspicaz : )
Achei interessantes as tuas perspectivas sobre o fundo dos contos e músicas tradicionais, desde o insólito, atroz e o bárbaro até à idiotia das rimas.

30 julho, 2006 20:04  
Blogger tikka masala said...

Não tenho desculpa para a idiotice da minha adaptação da letra, só posso dizer que é um daqueles casos em que a palavra em causa ("comeu") só lá está para rimar (com "deu")!

30 julho, 2006 20:52  
Blogger Vida de Praia said...

É por essas e por outras que detesto rimas : )

30 julho, 2006 21:29  

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