Pestilências do nosso tempo
Não é que queira tornar este blog num programa de discos pedidos. Mas resolvi aceder a uma amiga e dedicar uma rubrica a um assunto do âmbito social e moral, que a tem vindo a exasperar solenemente – aliás não só a ela como a qualquer pessoa com o devido sentido de responsabilidade e solidariedade social, que não aprecia que a tentem manipular e/ou que a privem do pouco tempo que lhe resta para si própria e para a família.
Trata-se de um fenómeno que daria pano para mangas, mas que tentarei descrever concisamente; fenómeno este que parece extremamente difícil de conciliar com as estatísticas oficiais dinamarquesas: nomeadamente o caso das pessoas desalojadas – ou melhor: de uma das actividades da sua predilecção – a venda do seu periódico mensal, cujo título difícil de traduzir corresponde mais ou menos a “O Sem Abrigo” ou coisa que o valha.
Ora, chegou-me à atenção, quer por conversa com a tal amiga, quer por experiência própria, que, independentemente do dia e da hora a que se vá às compras, à porta do estabelecimento está permanentemente um desalojado a tentar vender – ou melhor, empandeirar - a publicação em questão, que nem é cara, mas a meu ver também falha em ter o interesse do público em geral, já que expõe assuntos especificamente ligados aos problemas de se ser desalojado. Agora pergunto: num país em que, graças a uma rede de segurança social relativamente apta, a quantidade de desalojados supostamente é ínfima – e saindo o tal jornal somente uma vez por mês – como é possível estar uma destas pessoas à porta de cada supermercado da capital dinamarquesa diariamente de jornal na mão?
E passando ao cenário exasperante: uma pessoa entra no supermercado sem dinheiro trocado, porque hoje em dia é costumeiro pagar com cartão; sorri pouco à vontade por não ter os 3 € que custa “O Sem Abrigo”. O desalojado deseja-lhe um bom dia. Meia hora depois sai do supermercado, talvez com uns trocos no bolso e um monte de sacos, aparentando opulência e – como a boa pessoa que é – sente-se na obrigação de comprar o jornal ou pelo menos de voltar a desculpar-se ou de arranjar um pretexto esfarrapado tipo “já o comprei a semana passada” ou “já o comprei ao seu colega”. O desalojado volta a desejar-lhe um bom dia.
Porque será que uma pessoa se deixa levar por 1/3 de boa vontade e 2/3 de má consciência e não se sente no direito de poder dizer que não tem interesse (e porque haveria então de comprar ou ler algo sem o seu interesse no pouco tempo livre que tem à disposição?), sem se sentir um pária social?
A mesma questão se aplicaria por exemplo àqueles acordeonistas sem o mínimo talento, que se plantam à saída dos mesmos estabelecimentos. E aos pedintes sem ar de doente ou de inválidos, que nem sequer tentam dar uma de artistas à saída das estações de metro.
Por favor livrem-me da má consciência compulsiva e devolvam-me o livre arbítrio!
Estou consciente de que é um ponto de vista certamente controversial nos tempos que correm de humanismo fácil e que uma pessoa mal se atreve a proferir tal opinião – mas é também a minha e o blog idem, por isso fica aqui.
2 Comments:
O dilema é sempre o mesmo e não tem resposta. Mas custa que, por causa de uns, os outros não tenham a ajuda de que precisam e que, se não houvesse tantos parasitas, lhes daríamos de maior boa vontade.
Tens toda a razão, tikka: é mesmo um dilema irresolúvel. E irrita-me que seja assim, o que devo ter deixado transparecer...
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