segunda-feira, julho 31, 2006



Vida de praia
Tenho o privilégio de ter a praia a poucos metros de casa. Quilómetros e quilómetros de areia branca e água limpida e cristalina. Sinto que é minha, já que usufruo dela todo o ano: de Inverno agasalho-me da cabeça aos pés e vou lá ver uma paisagem deserta que aparenta o polo norte, com blocos de gelo enormes de formas irregulares; de Outono e Primavera e até fins de Junho a praia também é quase toda minha, escassos são os que por lá passam. Mas no pino do Verão transforma-se: multidões de forasteiros de todas as idades e feitios enchem-na de lés a lés, mais de fim de semana. Uns vêm passear as tatuagens, pavoneando-se para trás e para diante vezes sem fim. Há quem traga piquenique e bebidas frescas, outros fazem churrasco e ainda outros contentam-se com as sandes e gelados do barzinho. Nada-se, mergulha-se, seca-se ao sol. Lançam-se papagaios de papel, joga-se à bola, faz-se surf, apanham-se conchas. Ao fim do dia evacua-se a praia, mas a areia testemunha ainda sobre quem a povoou por umas horas apenas: um balde ou pá à deriva, pauzinhos de gelados, caricas e latas vazias abandonadas aqui e acolá. O que mais me irrita são as beatas - uma, duas, três...vinte cinco, vinte seis...perdi-lhes a conta. Os fumadores devem ter uma deficiência semântica ou visual qualquer, confundindo a extensão imensa de areia com um cinzeiro gigante. Ou talvez tenham a teoria errônea de que as beatas mais tarde ou mais cedo se dissolverão tal como os castelos de areia arquitectados pelos putos à beira mar. A praia é de todos, mas deviam ter mais cuidado com a minha praia...

domingo, julho 30, 2006

Indisponível
Domingo. Uma noite de Verão escaldante em que um mínimo de conforto requer deixar-se a janela aberta. Acordei às cinco e meia da matina com a algazarra prolongada e estridente de uma gaivota que parecia estar a lutar pela própria vida. Levantei-me e fui à varanda investigar a razão para tanto estrilho e encontrei-a em cima de um poste da luz a pregar ao mundo como imagino que S. Francisco de Assis o fez aos peixes, ou como uma feirante com altos pregões: "quem quer comprar!...Ó menina venha ver, venha ver!..." Enfim, um dos charmes de viver numa ilha, tal como a neblina marítima e ter de atravessar pontes todos os dias. O meu marido, que estava deitado ao meu lado, nem deu pela barulheira da gaivota - continuou a dormir serenamente como se nada se estivesse a passar. Como é possível tornar-se tão profundamente indisponível? Deixar o mundo de fora dessa maneira tão eficaz quando ele te bate à porta tão insistentemente? Compreendo melhor agora o que descrevem as mães cujos companheiros não reagem, nem acordam sequer, com o choro penetrante e agudo de um recém nascido. Os homens devem possuir um impressionante mecanismo natural de bloqueio absoluto e incondicional dos sentidos, pelo menos do ouvido. E se formos a ver também do tacto, pois os sons do lado mais agudo da escala quando ultrapassam um certo nivel de decibeis são arrepiantes. Voltei a deitar-me e nem deu por mim. Engraçado pensar que se tivesse cometido um delito a meio da noite teria o alibi perfeito: "Onde estava às x horas?" "Estava na cama a dormir, o meu marido pode corroborar, sr. comissário".

sábado, julho 29, 2006


Que idade tens?
A idade é um fenómeno interessante, tão incrivelmente maleável. Há quem nasça já velho com atitudes e posturas de vida conservadoras muito antes de ter idade para votar, conduzir ou ter varizes; e há aquelas pessoas que, como eu, mentalmente não passam dos dezassete. Como o Tom Hanks em "Big", uma adolescente presa num corpo de mulher adulta. Não uma adolescente da era pósmoderna, mas uma que viveu os anos oitenta em que o telemóvel, a internet e o ipod não tinham ainda sido inventados nem eram propriedade comum e o walkman e os LPs eram o auge da tecnologia à nossa disposição. Os meus pais sempre me pareceram muitissimo adultos: sérios, responsáveis, preocupados, apreciadores de fado e de música ligeira; e pensava portanto que era o que acontecia automaticamente com a idade, mas afinal não: ainda considero os Duran Duran a mais genial banda de sempre e choro com as baladas dos Spandau Ballet; ainda amuo e bato com as portas quando não me fazem as vontades e faço declarações de amor dramáticas; ainda vibro com as séries de televisão juvenis e me aborreço com os debates televisivos; e termos como IRS, condomínio, carburador e maioria parlamentar ainda me arrepiam e mistificam, apesar de com eles ter que lidar no meu dia a dia, fazendo cara de quem sabe do que se trata. Não tenho esperanças de amadurecer muito mais psicologicamente, não há disso vestígios. Mas não faz mal: a vida até é mais gira assim continuando a poder curtir os êxitos da melhor época do pop, mas desta vez sem o mau penteado e com mais poder de compra.

sexta-feira, julho 28, 2006


Lições de infância
Se é nítida a função dos contos, fábulas e histórias infantis no extender da imaginação e no incutir de principios morais e éticos - se desobedeces aos teus pais, arriscas-te a ser devorada por uma fera mal intencionada; se não dás ouvidos aos conselhos e avisos paternos, podes entrar em coma durante uma eternidade; é perigoso aceitar presentes de estranhos, especialmente quando vêm disfarçados de velhinhas bondosas; esquece pretenções a fazer um bom casamento a menos que tenhas vestidos deslumbrantes e sapatos de pedras preciosas; etc e tal - já a função das canções que todos entoávamos quando era miuda me parece mais obscura. Creio que não me ensinaram rigorosamente nada de construtivo ou didático; antes pelo contrário. Senão vejamos: um gato que por um triz se safa de uma morte violenta à paulada; uma menina que parte um cantaro e implora que a mãe não a espanque; uma viuvinha chorosa, desesperada e indesejada à procura de noivo; um malhão (mas o que é afinal um malhão?) que come, bebe e vadia; uma criada com sete namorados que não ama; um barqueiro que não se compadece de uma mãe e a força a sacrificar-se a si propria ou a um dos filhos; e por aí fora um rol de desgraças. Serão uma forma de inoculação para a vida, pequenos traumas que nos vacinaram contra potenciais traumas maiores e mais profundos? Ou apenas um produto da falta de consciência e sensibilidade da parte dos adultos? E será que nos tempos politicamente correctos que correm ainda se ensinam estas canções às crianças?

quinta-feira, julho 27, 2006

Com peso e medida
Obsessão:
pensamento ou ideia (por exemplo dúvida), impulso, imagem, cena, que invade a consciência de forma intrusiva, repetitiva, persistente e estereotipada, seguido ou não de rituais destinados a neutralizá-lo.
Compulsão: comportamento repetitivo e excessivo (por exemplo lavar as mãos, fazer verificações), ou acto mental (por exemplo rezar, contar, repetir palavras ou frases) que a pessoa é levada a executar em resposta a uma obsessão ou em virtude de regras que devem ser seguidas rigidamente.


Estou cada vez mais a chegar à conclusão que as mulheres portuguesas são obsessas – possessas mesmo – pela questão do peso. Não o peso em relação a objectos ou utilidades, nem o peso em sentido figurado, como peso dos anos ou da responsabilidade, mas sim o peso das pessoas, em especial das outras mulheres. E que essa obsessão predilecta não tem dia nem hora, escassos limites portanto, e a partilham aberta e compulsivamente com o alvo das observações. Olham a pessoa de alto a baixo e sai logo comentário: “ai, estás mais gordinha!” ou “ai, essa barriguinha!...”, num tom leve e galhofeiro de quem diria “ai, que belo dia que está hoje!” Ainda não decidi se o fazem em cada ocasião social que se proporciona, ou se viver no estrangeiro e só ter oportunidade de ver as pessoas esporadicamente me dá sempre o direito ao bónus das suas opiniões quando finalmente têm a oportunidade de as dar. Já notei porém que os comentários atingem principalmente a faixa que tem só uns quantos quilitos a mais; nunca ouvi ninguém dizer a uma mulher verdadeiramente obesa: “Estás mais gorda!”, não: guarda-se o comentário para a esfera dos acompanhantes a quem se sussurra, de preferência sem apontar: “ Já viste aquela mulher, que gorda?!” Esta persistente preocupação não se deverá certamente a uma bactéria no abastecimento água, pois também afecta mulheres portuguesas no estrangeiro. Uma conhecida perguntou-me por exemplo uma vez se tinha alguma “novidade”, com um olhar imbuido de significado posto na minha barriga. Um tipo de situação somente excedida por uma pessoa menos sensivel do sexo oposto que perguntou directamente se nessa altura estava grávida, o que não era o caso. Há uma inversa proporcionalidade entre a necessidade de se expressarem sobre o assunto e a necessidade do alvo das atenções de o ouvir. Este Verão por exemplo estive de férias em Portugal e a mãe de uma amiga, que já não via praticamente desde miuda, lá veio com o olhar escrutinizador e o comentário: “Tu ganhaste peso!...”, para o qual eu como sempre fui apanhada desprevenida. Reagi com um “eh...” embaraçado. Não notando talvez o meu embaraço pouco subtil, a senhora ainda acrescentou consternada: “E como vai ser para o perder?...” “pois...” disse eu, pensando cá para comigo: “para quê sublinhar o óbvio?!” Ora, se está cientificamente provado que mais de 90% das mulheres não estão satisfeitas com o corpo que têm, e se assumirmos que raros são os casos de sadismo e maldade conscientes, porquê então este comum acto de “pôr o dedo na ferida”? É exactamente o que me leva a concluir que se trata de um caso do foro do transtorno obsessivo compulsivo que afecta a população feminina portuguesa e para qual infelizmente ainda não há tratamento. Que outra explicação racional haverá para este fenómeno?